Tenho que admitir, me rendi. Segurei o papel, coloquei o tabaco, enrolei um pedaço de um papel um pouco mais grosso. Minha lingua selou o papel, como se fosse uma carta. Um recado, meu, seu... não importava. Estava selado. Puxei forte, como se tudo em apenas uma rasgada pudesse me massagear. Prendi por instantes e soltei. Como se uma parte de mim tivesse sido, enfim, liberta. A fumaça subia como fantasmas para o céu. Me deu uma vontade de seguir um pouquinho dela, mas nada me indicara que seria levada para meus pensamentos mais profundos. De repente meus olhos se fecharam. Se recusaram a impedir as lembraças passarem ligeras por eles, nao quiseram abrir. Entretanto, como um balde agua numa piscina cheia, eles transbordaram.
- É água, só água. Mas, naquele caso, refletia muito mais que isso. Refletia medo, medo de ser covarde. Não era só água... milhares de lembranças! Era um coração desgovernado, era necessário. Não era algo que se queria por luxúria, simplesmente se necessitava pra sobreviver.
- Perdão, senhores. Sei que não foi pra isso que vieram aqui. Porém, sinto em informar que aquilo se fora.
Ah! Abri os olhos, estava caminhando. Não tinha idéia de pra onde estava indo, mas tinha certeza de qual caminho seguir. Sabia também que não demoraria a chegar. Minha viagem era breve, apesar de dificil de continuar. Ah, mas o seu cheiro adora atormentar meu destino.
- Havia esquecido, isso já era inquestionável. Mas, ainda sim, a memória fez questão de driblar a razão. E ali continuava ele, parado.
Comprei maçãs, mesmo sabendo que, em algum lugar dentro de mim, a minha fruta preferida seja outra. Que me lembra algo que já esqueci. Não gosto mais dela, nem lembro o nome dela, nem seu sabor. Apenas que não quero mais vê-la. Maçãs! Maçãs são ótimas, abrem o apetite!
- E, mesmo assim, era tolo. Ingenuo, mesmo tendo um olhar desafiador e sedutor. Mesmo tendo essa voz de quem tem experiencia e é sensato. Meu querido, posso te falar uma coisa? Você sabe que você é um covarde. Pare de esconder isso de você.
Comi, logo senti fome. Senti uma fome como nunca havia sentido. Uma loucura, uma certeza. Não precisava me esconder, precisava? Queria correr, voar ou nadar, mas queria matar essa fome. E, eu sei, migalhas não serão o bastante pra me deixar satisfeito desta vez.
- Levantou. Reconheceu. Surpreendeu-se consigo mesmo. Sorriu no meio de algumas lágrimas. Sentiu dor. E, assim como fome é amor, dor é saudade. Era uma fome dolorida o que aquele menino sentia. Ele se deitou.
Vou encontrá-la. Preciso reencontrá-la. Porque em meu vocabulário ela é felidade. E, ah, muito mais que simplesmente felicidade. É algo mais, que talvez nem tenha nome. Uma coisa que simplesmente se sente e é impossivel de se colocar em mil palavras, muito menos como defini-la em apenas uma.
- Alguns dizem ser amor. Para ele, o amor era vago. O que sentira naquele momento era algo explosivo. Como se você não estive sentindo um, mas sim milhoes de sentimentos. Amor simplesmente era muito pouco. Era paixão, tesão, carinho, pressa, ansiedade, nervosismo, amizade, amor...
Corri, corri muito. Sabia que estava atrasado, em uma desvantagem ridicula. Queria muito, queria tudo. Perdi muito, tudo. Mas ouvi a voz. E era como cholate. Densa, suave. Assim como a fumaça, era tão leve e sutil que me rasgava. Mas era um dor prazerosa, intrigante, perturbadora.
- E era isso mesmo que estás pensando. Ai, a saudade. Pegou o menino de jeito, não soube administrá-la. Sua voz era a tal dor de que havia falado. Era prazeroso alimentar a dor, pois a dor era também saudade. E quem não gosta de uma lembrança bem presente? Ele gostava. Gostava muito, e talvez era esse mesmo o defeitodo menino. Vivia de lembranças.
Ao encontrá-la, pude sentir seu cheiro de verdade, e não aquele que achei ser dela meses atrás. Era doce, bem mais doce do qual havia idealizado. Era melhor, sobretudo, era real. Era o dela. Algo extremamente bruto segurou meu coração, como se quisesse fazer dele nada além de migalhas. Das quais sei que não posso alimentá-la. Sorri um sorriso tenso, que escondia algo muito maior que um sorriso poderia revelar.
- Se ele esqueceu? Lógico que tinha esquecido. Não se lembrara dela por dias. Mas a simples ideia de encontrá-la o remetera a tudo de novo. Era imprevisivel e provavelmente indesejada a viagem ao passado que inconscientemente era forçado a fazer. Tudo bem, não ele não esquecera, seu sentimento estava deixado de lado, intocado. Entretanto, estava vivo.
Meus braços abraçaram seu pescoço e parte de suas costas. Meus pelos se arrepiaram, como se eu estivesse me jogando num abismo. Mas que seu fim não me traria a morte, pelo contrário, me traria de volta a vida. Um abismo seguro. Uma loucura comportada, uma aventura sensata.
- Naqueles olhos já era possivel descreve-lo quase que por inteiro. Era jovem e seu olhar era cansado, de quem já quase desistiu muitas vezes. Mas que escondia um pequeno brilho de esperança. Seu coração era nobre, já aguentara demais. Já sangrou muito. Sua capa agora era como uma casca de machucado, era rigida, dificil de tirar, mas que quando se consegue, sangra muito. Ele estava bem, se recuperando. Não queria se entregar. Mas aquela capa só poderia ser rompida por duas razões: a primeira, obviamente, era ela. A segunda, bem... era ele mesmo.
Conversamos, rimos. Seu sorriso me encatava. Como pude esquecer tão facilmente de seus mais lindos detalhes? Era louco! Estava louco naquele exato momento. Anestesiado pela substancia mais tranquilizante já vista. Sentia uma paz. Eu cheirava essa paz. E era doce.