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segunda-feira, 19 de abril de 2010

Capitulo Dois - Evidências

Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1985, Domingo.
Querido diário,
Nem o fato de que o Brasil esteja sendo governado por um idiota chamado José Sarney, graças a morte inesperada do Tancredo Neves – que Deus o tenha – tirará de mim a felicidade que meu mundo se encontra. A partir de hoje, estou namorando e mais, pela primeira vez, completamente apaixonado. E só se sabe que está amando quando realmente se está. Não posso revelar meus mistérios. Me sinto completo e a parte que me faltava se chama Júlia.
19:02


Aquele homem tinha um rosto estranho. Seu cavanhaque era ruivo e ele, absolutamente careca. Um alargador preto enfeitava as duas orelhas e, no seu braço esquerdo, uma tatuagem estranha – e engraçada – da atriz Audrey Hepburn. Luz e ação. Começaria ali o meu teste para a peça “Muito Longe de Casa” baseada em um livro do próprio homem barbado. “Redentor” era como gostava de ser chamado. Ele fumou pelo menos 10 cigarros no período de 30 min.E aquilo me fez relembrar desse antigo vicio meu. Lembrei-me dos cabelos negros e lisos espetados e de quando me ofereceu um cigarro. Lembro-me de ter parado por saber que cada cigarro fumado o traria de volta ao meu pensamento. Aquele cheiro, aquela fumaça, aquele gosto e hoje, ele ali, do meu lado, comprando os mesmos cigarros de 20 anos atrás.
O movimento por ali era modesto, apesar de ser inicio de semana. Na minha sala mesmo, deviam ter entrado 4 pacientes e já estava quase na hora do almoço. Todo esse tempo ocioso me fez pensar na manhã que tivera antes de dar início a minha rotina de trabalho. São 12h, talvez encontrasse um amor perdido por aí. Pensei alto, minha sorte era que não tinha ninguém por perto para achar que sou maluco. E pra falar a verdade, nem sei porquê pensei. Talvez isso só me evidenciasse mais e mais que eu precisava mesmo tirar umas férias do hospital e pensar um pouco na minha vida. Eu me considerava um homem digno e bem apessoado, e não entendia como me considerava também muito solitário.
Recordei-me da sua barba espetando a minha bochecha e de como eu sentia cócegas. Seu hálito de cigarro que se confundia com meu de cerveja, e da maneira estranha que eu tanto o desejava. Não passei na prova do Redentor e não fui escolhida para fazer a maldita peça. Fiquei ansiosa e me deu vontade de comprar um cigarro. Cheguei a um barzinho perto de onde estava e fui ver se por ali vendia cigarros. Não vendia, mas pude desfrutar novamente daquele lindo tom de pele. Decidi me apresentar civilizadamente, mesmo morrendo de medo.
- Oi, você que é o Dr. Michel que estava hoje de manhã na banca de jornal, não é?
Eu estava mesmo distraído, olhando fixamente para o meu macarrão a bolonhesa e uma voz suave me perguntou quem eu era. Olhei os olhos amendoados e quase cor de mel que apareceram na minha frente. E a saia de cintura alta que favorecia seus seios. E tudo aquilo que apareceu que eu não conseguia verbalizar. Só sei que estávamos ali, um perto do outro, no momento mais íntimo que tivemos.
- Sim, sou eu sim! Bom, Michel, prazer, qual seu nome?
- Julia. Sabe que estou com uma dor nas costas? Passei aqui para comprar um cigarro e não tinha. Resolvi falar com você por saber que é medico.
- Pra falar a verdade, eu sou cardiologista. Cuido de corações.
- Ah, uma pena...
Eu me sentei mesmo sem ser convidada e ele não me pareceu desconfortável com isso. Será que ele não se lembra mesmo de mim? Será que existiram tantos amores depois do meu, que eu acabei me tornando irrelevante em sua vida? Será que ele nunca mais pensou em mim, depois que abandonei - quase que de vez – a cidade? Você agiu exatamente como achei que você fosse. Eu fui a machucada, por isso que me lembro tanto. Quanto mais pensava que tinha esquecido, mais eu estava lembrando que você existiu. E eu sei, existem coisas que realmente não fazem sentido.
Ela se sentou e eu não sei por que aquilo me causou um frio na barriga. Pude sentir meus lábios tremerem de tanta vontade de beijá-la. Quando ela começou a falar que havia pensado em fazer medicina e outras coisas que não fiz questão de ouvir, percebi que aquela mulher, que estava bem a minha frente, era a coisa mais linda que eu já vira. Não consegui terminar meu prato, pois nunca me senti a vontade comendo perto de alguém.
Quem diria que agora, 20 anos depois de ter quebrado o meu coração, ele vive para consertá-los por aí. Falei de muitas coisas com ele, mas ele não me pareceu muito interessado. Em suas 3 garfadas no macarrão que pedira, me recordei de como eu odiava o fato dele não saber segurar um talher. Ou por não saber que o guardanapo deveria ficar no colo. E de como esse jeito desajeitado dele continuava me perturbando. E, meu Deus, eu estava mesmo perturbada.
- Será que agora a gente pode para de fingir que não nos conhecemos?
- Como assim?
- Júlia, Michel! Eu sou a Júlia! A garota que você namorou dos seus quatorze até os seus malditos dezenove anos! A menina inocente que perdeu a virgindade com você. A idiota, que te contou pela primeira vez a piada estúpida do pássaro que não tinha cu! A Júlia que te amou louca, perdida e desesperadamente! A imbecil que deixou a vida dela correr sem rumo por nunca ter superado estar sem você. E, quando eu finalmente consegui esquecer o jeito que a sua barba espeta, que você come, que você ronca, que você respira, que você beija, que você sorri, que você olha, que você transa... te encontro, na rua, por acaso. E você não se deu nem o trabalho de colocar essa sua cabeça genial pra lembrar-se de como é a porra do meu rosto?
- Eu, na verdade, nem sei o que dizer. Realmente, não te reconheci. Pra mim, foi tão difícil quanto pra você, Julia! Eu demorei muito pra te esquecer e tive vários relacionamentos. Me dei muito mal em todos, sofri exatamente o que você sofreu. Mas, Julia, não fique brava comigo. Você me obrigou a te esquecer. Você sumiu, não disse pra onde iria, não me deixou nem se quer um bilhete ou uma blusa sua suja na qual eu pudesse apreciar o seu cheiro por mais algumas horas. Você não me deixou nada, nem alternativas. Tive que seguir em frente, mesmo não inteiramente satisfeito.
Respirei. De uma coisa eu tinha me esquecido: como suas palavras sempre soavam muito sinceras.
Parei. De uma coisa eu nunca poderia esquecer: eu me apaixonaria, se a visse de novo. E, que desta vez, seria impossível esquecê-la.

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