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domingo, 25 de abril de 2010

Capitulo Três - Tirando Uma Casquinha

Rio de Janeiro, 7 de julho de 1990, Sábado.
Querido diário,
Faz mais de um ano que não a vejo passar. Ainda me sinto como se fosse esbarrar com ela a cada esquina que viro. Sinto falta de uma verdade, é como se a vida tivesse perdido o sentido. E hoje, ela faz menos ainda. Acabo de perder um ídolo e uma inspiração. Alguém que com suas músicas me fez perceber que somos todos canalhas e não prestamos. Aprendi que sou uma daquelas pessoas que “não muda quando é lua cheia, que não sabe amar”.
“Lhes de grandeza e um pouco de coragem”.
Viva Cazuza, eternamente.
22:49



Minha bolsa abarrotada de coisas inúteis me impediu de achar logo a chave de casa. Demorei pelo menos 10 minutos para encontrar e só consegui depois de despejar tudo no chão do corredor. Eu só tinha duas horas pra me arrumar para o encontro que conseguira arranjar com o Michel. “Dr. Michel”, ri sozinha. Era extremamente estranho pensar que aquele moleque que eu conheci, hoje é próspero em um trabalho tão nobre. Olhe pra mim. O que eu tenho a oferecer? Não sou linda. Pelo contrario, sou extremamente comum. Minha presença não é notada até eu esbarrar – com meu jeito atrapalhado – em alguma coisa que quebra. Meu sorriso não impede ninguém de chorar e eu sou tão ruim com as palavras! Meu suspiro não arranca outro. Não tenho o corpo que todos desejam ter. Mal tenho um emprego. Por outro lado, ele tem tanto... Pelo simples fato dele não precisar ter nada para ser especial. Ele simplesmente é.
Desabotoei a blusa e a pendurei na cadeira do quarto. Estava inteiramente perturbado. Vasculhei cada centímetro de minha casa, mesmo sabendo que tinha pouco tempo até encontrá-la em um bar. No meu armário, numa prateleira esquecida, uma caixinha de madeira parecia chamar mais a minha atenção que os outros cacarecos que ali estavam. Ela era toda rabiscada com símbolos que não faziam sentido e um “não abra nem em casos urgentes” num garrancho adolescente. Sentei-me no sofá e abri. Havia fotos realmente antigas. Júlia mudara muito de anos pra cá, mas nunca perdera seu jeito charmoso de ser. Tudo que ela fazia, parecia ter tanto amor envolvido. Então como eu pude esquecer – não completamente – como era o formato de seu rosto? Havia um bilhete meio amassado, com partes queimadas, onde eu só consegui ler o seguinte trecho:
“ Te amo tanto. É tão difícil pra mim ficar sem seu toque. É tão triste ter que dormir quando você não está por perto. É tão impossível imaginar minha vida sem você. E, Michel, acredite, eu vou continuar te amando hoje a noite, amanhã, terça-feira que vem, mês que vem, ano que vem, até daqui a 20 anos, até a eternidade.
Feliz 3 anos. Seu presente está aqui em casa. Venha buscá-lo junto com a sua camisa do Johnny Cash.
Beijos, Julia. 16.08.1988 “
Faltavam trinta minutos para encontrar-me com ele no tal bar e restaurante. Estava quase pronta e resolvi calçar logo meu salto alto, até porque gostaria de ficar com uma altura próxima a dele. Esvaziei um pouco minha bolsa, colocando somente o necessário, como não fazia há anos. Desci as escadas do prédio e entrei no carro. Michel marcara um encontro num bar que costumávamos ir quando éramos jovens, no qual eu já não me via freqüentando mais. Apertei o botão da garagem – graças a Deus agora ele funcionava – e dirigi cautelosamente até o lugar.
Fechei a caixinha, deixando uma lagrima cair. Será que eu fizera mesmo questão de apagar aquelas coisas da minha cabeça, ou elas simplesmente foram se apagando sozinhas? Não me recordo da ultima vez que pensara nela a não ser nos últimos 2 dias. Vesti-me rapidamente, colocando uma roupa um pouco social demais para a ocasião, sem saber mesmo porque queria parecer elegante perto dela. Ela parecia me conhecer muito melhor que eu mesmo, levando em consideração que ela se lembrava de uma parte da minha vida que eu mesmo não recordava. Pensei bem: eu sou aquilo que vivi. Se não me recordo o que vivi, talvez não recordasse também quem eu era. Deixei pra lá. Saí de casa, indo em direção ao antigo bar da Rua Maria Quitéria.
- A moça chegou cedo, hein.
- Acho que pra quem esperou tanto por isso, até que estou um pouco atrasada.
Tentei ser engraçada e honesta com meus sentimentos. Aquele lugar era estranho, a música parecia ser a mesma desde a hora em que cheguei. Adolescentes se embebedavam na porta e eu não parecia estar vestida de acordo com o lugar. A maioria deles usava uma calça apertada e um all star. Eu, por outro lado, estava com um vestido preto e um salto vermelho, e minha maquiagem era básica e não pesada como a deles.
Sentei-me e logo me encantei por aquela mulher. Pedi cerveja para nós dois e a conversa fluiu. Isso sempre acontece quando as pessoas estão levemente alteradas. Conversamos sobre as coisas que tínhamos passado naquela rua e muitas vezes caíamos nos risos. Falamos sobre nossa vida, nosso planos, nossa família, e de como tudo isso mudara drasticamente com o passar dos anos.
Ele sempre me parecia engraçado e espontâneo. Eu tive a impressão de que meus olhos estavam começando a ficar vesgos. Estava quase bêbada e isso me dava cada vez mais vontade de me aproximar dele. Uma vontade louca e inesperada de comer sorvete apareceu. Desejos de gente quase bêbada.
- Vamos comer sorvete? Eu estou morrendo de vontade de tomar sorvete!
- Claro! Garçom, por favor, traz o melhor sundae que você tem pra nós dois!
Caímos na gargalhada simplesmente por termos pedido sorvete. É estranho como a vida fica tão mais agitada e divertida quando se tem álcool. E isso é um típico pensamento de bêbado. No final, o sorvete tinha chegado e minha boca estava seca por um pouco dele.
- Eu adoro sundae. É uma das coisas mais gostosas que já comi. Eu nem estava pensando em comer, mas quando você disse sorvete, pensei logo em sundae.
- Para de falar coisas sem sentido e come!
Eu ri, e como era de costume, comi o sundae pelas beiradas. Percebi no rosto do Michel, ele parecia tão ingênuo enquanto deliciava-se na calda de chocolate. Tive uma vontade repentina de beijá-lo.
- Por que você esta comendo pelas beiradas?
- Porque a parte que eu mais gosto do sundae é a paçoca e eu quero deixá-la pro final.
Um silencio – de nós dois, não do local – tomou conta por um instante.
- É isso que a gente tá fazendo, não é?
- Como assim?
- Nosso relacionamento, Julia. A gente estava comendo pelas beiradas. E agora, estamos aqui, quase chegando à paçoca.
Meus olhos encheram d’água enquanto aquelas palavras saltavam da minha boca. Eu estava mesmo muito doido. E tudo o que havia se passado naquela noite, me deixara mais perturbado ainda. Quis abraçá-la, quis correr, me esconder, mas fiquei incrivelmente imóvel.
- Michel, essa é a coisa mais estúpida e linda que eu já ouvi em toda a minha vida. Mas eu espero que ainda demore a acabar o nosso sundae.


Mentira. Queria que tudo tivesse se concretizado naquele instante.

3 comentários:

  1. só mais uma constatação, o texto ta ficando ótimo!

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  2. ual, não sabia dessa sua habilidade de escrever,
    alias blues da piedade é uma música inspiradora

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